7 de novembro de 2009

Untitled -por Estela Seccatto

E lá estava ela, parada na minha frente. Seu olhar me dizia que tudo acabava ali.

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Bem, eu conseguia enxergar em cada traço uma lembrança. Assim como a cicatriz na mão de Kate. Eu lembro com cada detalhe o dia que eu a conheci.
Toda sexta-feira eu dizia pros meus pais (ou melhor, só pra minha mãe agora) que trabalhava até mais tarde.. Então ia pra velha praça onde todos se encontravam. Aquela praça era única. Adultos e crianças passavam por lá dias de semana. Nos finais de semana os adolescentes se encontravam pra fugir do resto do mundo. Cada noite naquela praça era única. Passei na banca que insistia em ficar no caminho (a rua não era a mesma sem a banca). Comprei o cigarro de sempre. Não muito forte, não muito fraco. Coloquei o capuz da blusa por causa da garoa. Na verdade, a garoa era uma desculpa, eu adorava colocar capuz. Mas o conjunto de tudo que formava aquele dia me desanimava. Eu sabia que eram poucos os que iam para lá quando o tempo estava assim. Eu ia pra lá porque gostava. Eu amo o vento gelado. Eu amo as gotas do céu. Sentei no chão, encostei no banco. Eu nunca gostei de sentar nos bancos. Acendi o cigarro com muito esforço -na luta contra o vento- e ele finalmente permaneceu aceso. Fiquei observando um grupinho de meninas que eu odiava. Três meninas que compravam brigas com qualquer pessoa. Bastava não idolatrá-las. Eu fazia questão de desprezá-las, então as brigas eram frequentes. Elas estavam sentadas falando alto e fingindo que um gole de bebida fizera efeito. Era bem divertido observá-las.

Um pouco mais distante vinha uma menina. Ela tinha seus cabelos pretos -molhados pela garoa-, um rosto de criança, uma blusa tão normal quanto a minha -mas sem capuz. Ela usava um boné. Ela seria uma menina qualquer, mas ela usava um boné. Em 17 anos naquela cidade (toda minha vida) eu nunca tinha visto uma menina com tanto estilo. Ela passou reto pelo grupinho medíocre de Anna, e não precisou de mais nada para a briga começar. Elas faziam expressões de ódio, mas eu não conseguia ouvir o que tanto diziam. Foi quando Anna fez o que fazia de costume: pegou uma garrafa vazia na mão. Eu dei uma tragada no cigarro, joguei meu vício no chão e fui caminhando até o local do crime (crime?). À uns dez passos de lá Anna quebrou a garrafa na mesa de concreto e avançou sobre a menina de boné. Eu não podia permitir, ela era a menina mais linda que eu já tinha visto. A menina se protegeu com a mão, e eu cheguei. Empurrei Anna.
-Se afasta dela.
-Quem é você pra me dizer o que fazer, Amanda?
-Eu sou a única menina da cidade pior do que você.
-Vamos, Anna, não perca seu tempo! -disse uma das meninas do trio.
As três sairam enquanto eu as fitava. Esperei que sumissem na neblina. Voltei para a menina do boné.
-Vem, vamos cuidar disso.
E a levei ao banheiro do parque, que parecia mais um daqueles banheiros abandonados de filme de terror. Abri a torneira e passava aguá com cuidado na mão dela. Tinha medo de machucá-la mais. O corte estava fundo. Fechei a torneira e comecei a secar sua mão com a manga da minha blusa. Nada muito higiênico, mas era o único jeito.
-Não vai se apresentar? -sorri, sem olhar para ela.
-Pensei que você fosse fazer isso. -não sei se riu.
-Mas a nova aqui é você..
-Como sabe que sou nova?
-Eu já teria te notado antes.
-Kate. -ela disse fechando a mão nas minhas de dor.
-Te machuquei? Desculpa, eu sou a..
-..Amanda. Eu ouvi.
A voz dela era linda. E eu estava feliz por ela ter lembrado meu nome. Eu não continha meu sorriso.
-Eu moro aqui perto, vamos cuidar da sua mão.
-Não precisa, tá bom assim. -era timidez aquilo na sua voz.
-É uma ordem.
Rimos. Ela tinha o sorriso mais lindo e inocente. Me acompanhou até em casa. Entramos. Eu subi as escadas até a metade e olhei para trás.
-Você não vem? A escada não morde desconhecidos.
Ela riu novamente e subiu comigo. Cuidei daquele corte enquanto não diziamos nenhuma palavra. Trocávamos alguns olhares. Eu tinha medo porque sabia que meu coração não batia daquele jeito em situações normais. Eu poderia ficar ali a vida inteira olhando para ela. A menina do boné. Kate.
-Pronto, nova em folha -soltei sua mão.
-Nada mal, mas 'nova em folha' é uma expressão bem antiga. Pensei que você fosse mais nova. -ela ria com tanta vontade. Era contagiante.
-Tenho 17, sou jovem ainda.
-19.. e sou mais jovem que você.
Dezenove anos e aquela cara de criança? Sorri. Mas ela parou de rir de repente.
-Faltou uma coisa -disse assustada.
-O que? -não tinha nem idéia do que poderia ser.
-Ouvi dizer que pro machucado sarar tem que dar beijinho. -mais risadas.
Eu queria ela pra mim, eu precisava dela a partir daquele momento. Peguei sua mão e a beijei por poucos segundos eternos. Ela sorriu. Olhei em seus olhos pela primeira vez, mas recuei. Olhos castanhos, olhos claros. Ela levantou minha cabeça devagar -com a mão que não segurava a minha- e me olhou de volta.

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Desejo -por Kate

Cada movimento de Amanda era cuidadoso, cada toque era suave, cada sorriso era tímido. Ela tinha um sorriso de quem não gosta de se aproximar. Ela evitava qualquer contato, mas acabava me tocando. Eu queria cuidar dela mais do que ela cuidava de mim. Senti seu beijo doce em minha mão e quis todo aquele carinho pra sempre. Nem que fosse apenas em minhas mãos. Vi seus olhos escondidos nos cabelos loiros. Eram azuis. Ela tinha algum medo de me olhar, mas eu precisava daqueles olhos denovo. Então estávamos lá, nos olhando diante de tanta vergonha, curiosidade e vontade. Vontade uma da outra.

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O Começo -por Amanda

Ela se aproximou. Senti sua mão gelada na minha nuca. Senti sua respiração se aproximando do meu rosto. Estava cada vez mais acelerada. Então sai daquele mundo. Os lábios dela já tocavam os meus. Apesar do dia frio e da mão fria, sua língua estava quente e era capaz de me esquentar inteiramente. Aquele beijo me faz sonhar até hoje. Sua mão adentrando minha blusa devagar e deslizando sobre a lateral do meu corpo. Sua língua na minha orelha descendo até meu pescoço..
-Filha, você já está em casa? -era a minha mãe.
No fundo eu agradeci minha mãe. Eu estava com medo do que iria acontecer. Kate deve ser tão experiente.. e eu nunca passei do nível 1 de uma relação. Digamos que o nível 1 era mão por cima da roupa.
-Mãe, esta é Kate. -disse enquanto abria a porta.
-Oi Kate, você é nova aqui? -minha mãe foi sempre simpática com minhas amigas.
-Sim, eu e minha família nos mudamos pra cá essa semana.
Essa semana meu destino se escreveu. Aqueles olhos castanhos e aquele cabelo preto tinham que ser meus. Ela tinha que ser minha. Alguns dias se passaram e era como se nos conhecessemos há muito tempo. Mas eu sabia que ela não me conhecia. Eu sempre escondi meu vício, minha dor, meu problema. Eu namorei um menino ano passado e nosso namoro se baseava em drogas. Kate não sabia que eu ainda o encontrava. E bom, para ele sustentar meu vício, nossas bocas precisavam ser tocadas. Ele não sabia de Kate, Kate não sabia dele. Nenhum compromisso foi feito com Kate, certo? Apesar das promessas, não existia anel em minhas mãos. Eu tentei me afastar o máximo daquelas drogas, mas meu corpo implorava sempre um pouco mais. Eu não queria começar uma relação baseada em mentiras, mas não podia contar tudo. Decidi contar pra Kate sobre as drogas, mas não sobre Fillipe.
"Kate, você pode me encontrar hoje?"
"Na praça, às 23h00min. Eu amo você"
"Eu também."
Mensagens trocadas. Eu nunca conseguia dizer que a amava. Talvez pelo fato de meus pais serem separados. Eu tenho medo de promessas. Olhei no relógio: 22h45min. Saí de casa. Estava com medo de sua reação. Eu não podia perdê-la. Ela era a menina do boné. E estava linda como sempre. Sentada no chão -ela também não gostava de bancos- olhava atentamente o silêncio que havia em sua volta. Me aproximei em passos quietos.
-Bu!
Ela não se assustou. Ela nunca assusta. Mas é sempre engraçado. Ameacei beijá-la.
-Não, não, não.. o cigarro!
Ela odiava me ver fumando.. e odiava o gosto. Joguei o cigarro fora, coloquei uma bala na boca e sentei do lado dela. Ela me deu um selinho. Ficamos nos olhando sem dizer nada. Apenas sentindo nossas mãos se aquecendo.

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Meia Verdade -por Kate

Ela tinha algo escondido. Tinha algum segredo atras daquele lindo sorriso. E muito mistério nunca significa algo bom. "Kate, você pode me encontrar hoje?". Não era normal a gente se ver de segunda. Sengudas e quartas eram os dias que a gente não se via por puro costume. Nós gostávamos de sentir saudades e saber que nos veríamos no dia seguinte. Eu sabia que ela tinha algo pra me contar. Aquilo martelava na minha cabeça. Será que ela não me quer mais? Eu precisava dela, eu amava ela.
-Bu!
Ela tinha chegado. Meus pensamentos fugiram amedrontados. Eu tinha sede dos lábios dela. Mas aquela fumça não era neblina..
-Não, não, não.. o cigarro!
Eu odiava ver ela fumando, estragando a vida dela. Meu tio havia morrido de câncer no pulmão. Mas eu nunca consegui convencê-la de parar. Estávamos lá, nos olhando. A mão dela estava mais gelada do que a minha, mas conseguia me esquentar. O mundo era só eu e ela. Eu precisava saber o que os azuis dos olhos dela queriam me dizer.
-Mandy, você pode me contar o que quiser.
-É difícil.
Ela abaixou os olhos me recordando o início de tudo -quando ela não me olhava e eu precisava fazer de tudo pra ter uns segundos daquele olhar.
-Nada vai me fazer te amar menos, confia em mim.
-Eu uso drogas -ela apertou minha mão e virou o rosto.
Aquelas três palavras estavam se organizando na minha cabeça; aquilo era uma informação difícil de processar. Ela foi tão direta e eu não conseguia acreditar. Porque ela não me disse antes? Eu não tinha o que falar, e nem teria como interrompê-la.
-Eu juro que eu tô tentando parar, eu juro. Se você quiser nunca mais me ver eu entendo. Mas eu te amo muito e não..
Eu a beijei. Ela tinha dito que me amava pela primeira vez. Cada letra estava repleta de sinceridade e medo. Foi o beijo mais longo, o beijo mais carinhoso e acolhedor. Eu queria que ela soubesse que eu estaria sempre ao lado dela.
-Você não se importa?
-Me importo.. Mas te amo.
E entre algumas palavras que paravam o beijo, consertei minha frase:
-Me importo porque te amo.

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Alívio -por Amanda

Como resposta à minha revelação, ela me beijou. E eu percebi que podia contar com ela. Minha vida tinha criado uma base e essa base se chamava Kate. Dai em diante minha vida se tornou perfeita -ou quase perfeita- se não fosse a necessidade do meu corpo por aquele pó mágico que só o Fillipe conseguia pra mim. E se não fosse meu ódio quando minha mãe saia a noite. Saídas a noite eram sinônimos de encontros. Ela marcava encontro muito pouco, mas eu sentia falta do meu pai. Eu tinha esperanças dele voltar. Eu queria meus 15 anos de volta. Aquele era um desses dias..
-Tchau filha, deixe a porta trancada. -sempre me tratando como uma criança.
"Amor, vem ficar aqui comigo? Tô com medo, haha"
Depois de 20 minutos a campainha tocou 3 vezes. E esse era o sinal de que era ela. Desci as escadas correndo, abri a porta e pulei nela. Acho que nunca tinha dado tantos beijos em seu rosto em tão pouco tempo. Subimos, ela deitou na minha cama e eu sentei no chão. Ficamos jogando conversa fora. Era só o que uma menina de 17 anos e outra de 19 poderiam fazer. Ou talvez tivesse outra coisa..
-Amor, tô com frio. -aquela voz de bebê me matava. Levantei do chão e deitei com ela.
-Se isso não funcionar eu pego um cobertor.
Ficamos abraçadas. Entre palavras haviam beijos, e entre os beijos haviam mordidas. Me vi mordendo o pescoço de Kate como nunca. Havia um sentimento carnal mais forte do que antes. Quando notei eu já estava sem blusa.. e ela também. A cada deslize de mão meu corpo pedia mais. Enquanto Kate beijava meu pescoço suas mãos desabotoaram minha calça lentamente. As roupas todas estavam no chão em poucos minutos. Seu corpo era tão perfeito quanto tudo o que havia nela. Sua lingua desceu pelo meu corpo em segundos lentos e eu mordia os lábios para evitar os gemidos mais altos. Os movimentos de sua língua me enlouqueciam, tinham efeito maior do que a droga. Voltou a boca até a minha. Meu corpo junto ao seu pedia mais contato. Aquele calor queria mais ligação. Sua mão fez o mesmo caminho que a lingua fizera. Aquela mão e aqueles dedos faziam magia. Me tiraram do mundo por muito tempo. Minhas unhas não tiveram piedade das costas de Kate. O gemido dela na minha orelha me fez perceber que minha mão fazia a mesma coisa que a dela. Estavamos totalmente ligadas, nada podia nos separar. Nossos corpos e pensamentos estavam ligados entre movimentos rápidos e lentos. Senti suas unhas apertando minhas costas e um último gemido deu início à respiração ofegante de Kate. Comigo o mesmo. A ligação física se desfez aos poucos, mas nossas mentes estavam no mesmo lugar.
-Mandy, acorda, sua mãe chegou.
Aquela voz era o paradoxo do verbo acordar. Ela me pedia imensamente pra dormir mais um pouco.
-Minha o que? -perguntei abrindo os olhos.
-Sua mãe, capeta! -ela riu como se fosse uma criança fazendo arte.
Parecia ter acordado fazia pouco tempo. Levantei aos pulos e ouvi minha mãe me chamando. Fui correndo abrir a porta do quarto.
-Acho melhor se vestir.
Kate não parava de rir com minhas roupas em suas mãos. Me vesti correndo e abri a porta.
-Kate vai dormir aqui, isso não é hora de me acordar e me irritar, amanhã a gente se fala, você é a melhor mãe do mundo, eu te amo e tenha uma boa noite.
Fechei a porta sem esperar resposta. Fiquei com dó depois, mas mãe sempre perdoa. Comecei a rir quando me olhei no espelho e vi minha blusa do avesso. Puxei Kate pra cama comigo. Dormimos. Acordamos. Podia jurar que era um sonho.
-Foi real? -perguntei
-Foi.. mas faltou uma coisa.
-O que? Um beijinho pra sarar? -não sei porque lembrei disso naquela hora.
-Não, sua boba, faltou eu dizer que te amo. Eu te amo.
Desviei meus olhos. Me arrependi e a olhei de volta.
-Eu também amo você, minha vida.
-Eu queria que você se sentisse segura, você tava com medo, né?
-Como você percebeu? Eu fiz errado? Você não gostou? Me descul..
-Shhh -sua mão tocou meu lábio, seu olhar tocou meu olhar.
Eu acho que do nível 1 eu pulei pro último nível em uma relação. Passaram os dias e o compromisso foi feio. Nós tinhamos um objeto no dedo que concretizava tudo aquilo. Mas eu mantive os beijos mais nojentos com Fillipe. Aquilo me incomodava todo dia um pouco mais. Eu, que odiava traição, estava traindo. Se eu pudesse explicar que não havia sentimentos e que tudo era pelas drogas.. e se Kate pudesse me entender.. eu contaria. Mas eu não podia arriscar perdê-la. Eu acho que ela notou que eu ainda escondia algo.

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Desequilíbrio -por Kate

Ela era a melhor pessoa do mundo. Cada dia eu a amava mais. Amanda era o nome da menina que eu queria passar o resto da minha vida, compartilhar todas minhas alegrias. Mas a cada dia que passava ela olhava menos para mim. Parecia que estavamos voltando no tempo. O medo a dominava denovo e eu não conseguia entender o porque. Ela dizia que não era nada. Deixei passar. Se a incomodasse ela ia me falar.

Eu estive meio distante da minha família depois que nos mudamos. Então aceitei quando minha mãe propôs de sairmos para jantar. Minha mãe não era muito de sair e isso me fez estranhá-la. De um dia pro outro ela dizia que me amava todo minuto. Pensei que era algum tipo de depressão. Mas foi algo de impacto muito pior.
-Filha, eu tô com câncer. -ela já chorava.
Eu a abracei. Senti as lágrimas saindo do meu coração e percorrendo o caminho lentamente até meus olhos.
-Você sabe disso faz quanto tempo? Você precisa se tratar! Porque não me disse isso antes? É câncer onde? -as perguntas saiam entre soluços.
-Já faz um bom tempo. Tratamento não adiantaria. O médico disse que..
Ela chorava, chorava como nunca a vi chorando.
-O médico disse o que mãe? Me fala.
-Um mês, Kate, só um mês.
Aquilo se repetia na minha cabeça, pareciam alfinetes me torturando. Meus olhos pararam e eu não pude acreditar. Era como se num silêncio absoluto eu pudesse ouvir ela dizendo "só um mês". Eu não a soltei. Ficamos abraçadas até nossos olhos desistirem das lágrimas. Liguei para Amanda, e então todos os dias durante um mês ela ia em casa. Ela sempre me dizia palavras de conforto. Minha mãe já estava fraca. Câncer no pulmão deve ser um dos piores, analisando os fatos. Um dia estavamos sentadas na cama nos distraindo como sempre. Eu, Mandy e minha mãe. Mas minha mãe já não sorria tanto. Muito menos falava.
-Kate, eu te amo mais que minha vida.
-Eu também te amo mãe, mas nada de clima triste, tá? -meu coração apertava.
-Cuida do seu pai, cuida da casa. Quando prometer amar alguém, prometa com o coração. Pra que em nenhum minuto tenha incerteza ou dúvidas desse amor.
-Tá bem, mãe. Mas porque isso agora? Você tá me preocupando. -eu a abracei.

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Eu Estou Com Você -por Amanda

Kate abraçou ela, e aquilo me fazia querer chorar mais a cada segundo.
-Boa noite, filha, eu vou dormir. Tenha um bom dia daqui pra frente.
Ela fechou os olhos e Kate começou a chorar.
-Mãe, não dorme, fica acordada comigo.. A gente quase não conversou hoje. Mãe.. Não dorme mãe. Conversa comigo.. Mamãe, acorda por favor. Amanda, ela não me responde.. Amanda, ela não acorda! Acorda mãe!
O desespero em sua voz me matava por dentro. A forma com que uma palavra atravessava a outra.. Alguém precisava ser forte. Abracei Kate depois de deixá-la um bom tempo com a mãe.
-Amor, eu não sei o que você ta sentindo, mas você precisa ser forte e entender que um dia todo mundo vai embora.
Eu podia sentir as lágrimas quietas de Kate caírem sobre mim. Permanecemos em silêncio. O pai dela chegou e assisti toda aquela dor denovo.

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Obrigada -por Kate

Depois disso Amanda parou de fumar. Parou com as drogas sem nenhuma ajuda. Ela não queria que a vida dela acabasse assim. Uns meses se passaram e cada dia era uma saudade. Eu precisava superar e Amanda conseguia me ajudar nisso como ninguém. Eu confiava nela mais que tudo. Eu sabia que desde a primeira vez que ficamos juntas ela era inteiramente minha. E eu só dela. Ela passou a ser a única felicidade dos meus dias. A regra de segundas e quartas ficou pra tras. Nos víamos todos os dias. Nunca nos faltava assunto, nunca nos cansávamos uma da outra. Ela foi tirando aquela dor de mim. Ela me acalmou na dor do Natal e do Ano Novo. Sempre a mesma praça. E os meses passaram, e o frio chegou denovo.

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A Outra Metade -por Amanda

Eramos as únicas que andavam pelas ruas em dias tão gelados. E sem o cheiro do velho cigarro eu conseguia sentir o cheiro do frio. Só quem gosta de frio sabe qual é o cheiro que isso tem. Cheiro puro. Estavamos andando pela praça. Então vimos uma pessoa cortando o vento. Um menino. Fillipe.
-Amanda! -me cumprimetou com um beijo.
Fillipe me beijara na boca na frente de Kate, minha namorada. Olhei para ela e vi uma expressão que nunca tinha visto. Fillipe não percebeu nada e continuou:
-Já faz uns meses que você não vai em casa pegar drogas, fiquei preocupado. Mas já vi que tá viva!
-Sai daqui, eu preciso falar com a Amanda.
Kate estava brava. Eu nunca tinha visto ela daquele jeito -nem com Anna. Fillipe saiu rindo, sem entender.
-Amor, antes de qualquer coisa deixa eu me explicar -não tinha explicação- ..ele é meu ex, eu ficava com ele algumas vezes pra pegar droga, só isso. Mas faz muito tempo.
-Foda-se, Amanda, você ainda se drogava quando a gente tava juntas! Você encontrava com ele mesmo namorando comigo!
Ela tinha me chamado de Amanda, e eu não tinha mais argumentos.
-..e as promessas porra? Você dizia que me amava, que eu era única e ficava com outra pessoa?
-Kate, me desculpa, eu errei mas..
-É, você errou.. e errou feio Amanda, eu não consigo mais confiar no seu amor. E a base de qualquer relacionamento é a confiança. Porra, eu te amei.
"Eu te amei". Verbo no passado. Ela jogou na minha cara o que me corroía todos os dias. Me faltava ar pra dizer qualquer coisa.
-Eu te amei, cara, e você não deu valor. Foi tudo mentira então? -não sei mais se era raiva ou tristeza.

E lá estava ela, parada na minha frente. Seu olhar me dizia que tudo acabava ali.

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Solução -por Kate

Eu confiei nela, eu precisei dela. Eu preciso dela. Porque ela fez isso? Ela tirou todas minhas dores. Todo aquela amor não poderia ser mentira. Eu não conseguia acreditar. Eu beijei por tanto tempo a boca que outra pessoa beijava. Eu tive todo o carinho dela em minha mão, em minha cicatriz. Ninguém nunca tinha se importado como ela se importou. Ela se importou? Que merda! Ela não devia ter feito isso, é ridículo. Eu estava com medo de começar a odiá-la. Eu não queria que aquela raiva crescesse, mas não fui capaz de perdoar. Eu precisava de uma solução, de uma resposta. Aqueles remédios me chamaram a atenção.

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Último suspiro -por Amanda

Kate foi pra casa e eu permaneci na praça por um bom tempo. Achei melhor não correr atras.. Pelo menos não agora. Voltei pra casa a noite. Não dormi. Como poderia dormir? Como alguém consegue dormir se perde o amor da sua vida por um erro estúpido? Não dormi. Não vi as horas passarem. Mas elas passaram. Diante dos meus olhos eu vi um fio de luz entrando pela janela com pouca força, sem vontade de brilhar. O dia estava fraco.
"Eu te amo mais que tudo, você é meu ar. Me desculpa, minha Kate."
Esperei uma hora e não obtive resposta. Liguei. Eu precisava que a voz dela me dissesse que estava tudo bem. Ela não atendeu. Mas eu precisava. Eu não me importava se eu me humilhava diante daquilo. Fui até a casa dela. Toquei a campainha, não tinha nenhum sinal de vida. Fiquei naquela porta por mais de uma hora. A chuva caia na minha cabeça na tentativa vã de lavar minha culpa. Me veio a idéia de que Kate pudesse estar na praça. Lá era o nosso lugar. Fui em passos lentos, passos sem esperança alguma.
-Você é a Amanda? -um homem desesperado, molhado da chuva e de medo, me parou. Assustei.
-Sou, quem é você?
-Uma menina na praça.. ela pediu pra eu te encontrar.. ela tomou muitos remédios, você precisa vir comigo. -ele segurava no meu braço, me puxando com força.
-Que menina? Que remédios? Quem é você?
-Não sei o nome dela. Uma menina de boné.
Uma menina de boné. Minha menina de boné. Não pensei, corri. Eu empurrava o mundo com meus pés. Eu deixei todas aquelas ruas para tras. Tinha muita gente em volta de algo, em volta de alguém no chão.
-Kate! -todos olharam.
Cai sobre o corpo dela, a abracei forte.
-Kate, fala comigo, por favor. Kate, fala comigo!
Era inútil, o corpo da minha menina já estava sem vida.
-Kate, você não pode me deixar!
Eu beijava seus lábios gelados. Seu cabelo molhado se espalhava nos meus braços.
-Por favor, Kate.. eu te amo mais que tudo..
Já estava sem força. Não sabia mais o que era chuva e o que era choro.
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Em cima da mesa de sua casa havia um bilhete. Tudo o que me restou dela, além do boné.
"Amanda, você precisa ser forte e entender que um dia todo mundo vai embora. Eu sempre vou te amar e queria morrer antes que isso virasse uma incerteza."
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De Amanda para Kate

"Tantas coisas sem valor poderiam ter sido ditas no meio de tantas conversas..
Palavras jogadas fora, omiti meu maior erro te fazendo promessas.
Já não faz nenhum sentido agora que te perdi.
A praça, o chão, a neblina, a sua cicatriz.
A bala antes do beijo, a roupa do avesso.
Não existem mais.
Em todo verão eu vou sentir sua falta.
Cada gota de chuva vai me lembrar você.
Eu sei que não poderei mais acordar do seu lado.
E eu não terei mais sua voz pra me dizer:
'eu queria que você se sentisse segura'
Você era a única que me conhecia atrás dessa armadura.
Eu não aguento mais.. e sem você nada valerá.
Estive me despedindo de amigos pra tentar chegar onde você está.
Então responda: onde você está?
Como posso ser forte se minha base era você?
Como posso seguir sem seus passos ao lado dos meus?
Você me mantinha em pé.
Como posso aguentar tudo isso agora?
Hoje eu fiquei por tanto tempo te esperando do lado de fora..
E você não abriu a porta. Você não abriu a porta.
Tudo o que restou foi seu bilhete em cima da mesa:
'eu sempre vou te amar, e queria morrer antes disso virar incerteza'"

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