23 de fevereiro de 2018

Três vezes eu fui você

Três vezes eu fui você: quando nasci, quando cresci e quando morri. Quando te vi meu coração bateu e parecia que ia me rasgar de dentro pra fora. Eu achei lindo. A garganta doía na hora de falar qualquer coisa que fosse, nunca saía da boca o que eu pensava. O estômago revirava, a respiração falhava e eu gaguejava. Eu achava lindo. Eu nasci. De mãos dadas caminhamos dia após dia, lado a lado, passo a passo. Evoluí e não te vi lá do alto. Eu não te vi lá do alto porque mais uma vez você estava do meu lado. Você evoluía no mesmo ritmo, na nossa dança. Eu cresci. Uma hora (não lembro quando) alguém tropeçou (não lembro quem) e caímos ao chão.Ao invés de rir preferimos nos culpar e apontar nossos dedos bem no meio da cara, em meio a gritos, como se nunca tivera sido lindo. Eu morri. Você foi o amor de uma vida inteira assim como outros amores virão. Eu renasci e outra vez serei três vezes um outro alguém. E cada vez que eu nasço, cresço e morro ao lado de alguém eu me reconstruo pra ser simplesmente eu: na minha forma mais pura depois de tanto renascer.


(Estela Seccatto)

Contradição

Minha orquestra é ruído pro seu violão. Pra sua voz de tecido meu ouvido é rebelião. Sou trovão no chuvisco, sou o grito do pulmão. Ansiedade e paciência, eu sou contradição. Sou a dor da garganta antes do choro, sou o medo da veia antes do soro, sou quem desafina no meio do coro, sou o eco do tiro no meio do morro e corro! Sou fogo, sou fumaça, sou tosse. Sou minha dona e sou minha posse. Zona, caos, bandeira branca. Sou fim de guerra, perna manca, chave que não gira a tranca. Sou cela de cadeia, leite, mel e aveia. Montanha-russa. A bala da roleta-russa. O dedo que puxa o gatilho, a cara que leva o tiro e a angústia de quem viu e não fez nada. O primeiro gole na cerveja gelada, sou a alma pelada e a pele lavada. Sou a rifa premiada. Piada. Sem graça. Sou caça e sou leão. Minha desgraça e meu perdão. Apêndice e coração. Meu sangue é frio na palma da mão. Meu silêncio se faz grito na respiração. Minha orquestra é ruído pro seu violão

(Estela Seccatto)

22 de fevereiro de 2018

Quem eu sou

Eu sou a gota de álcool que fazia meu avô pegar a arma e ir atrás do meu pai no meio do mato. Sou todo medo que a lua observava lá do alto enquanto a noite se arrastava. Eu cresci com o pé no barro e no asfalto, a mão no guidão e a cabeça em um mundo que não é esse daqui. Eu fazia lição na cadeira do lado do fogão. A gente não tinha sala, não tinha sofá, tampouco escrivaninha pra estudar. E a gente nem queria ter, nem precisava ter. A gente agradecia ter o que botar no pé e o que comer. Agradecia ter o que sonhar. Nem computador, nem celular. Bastava um quintal e uma mente pra criar. Eu sou o banquinho que minha mãe subia quando criança pra alcançar a pia e lavar a louça. Eu sou a máquina de costura da minha avó. Eu sou a fralda de pano, a dor nas costas, a roupa batendo e o varal já cheio. Eu sou os tijolos colocados lado a lado pelas mãos cansadas do meu pai. Eu sou o cavalo velho do meu tio e o cheiro do café moendo. Eu sou o caminho pra sombra da mangueira, os coringas do baralho e a caixinha de dominó. Eu sou o nó da rede, eu sou a fome e eu sou a sede. Eu sou o trabalho que minha prima deu, sou o susto que minha mãe pariu, o diagnóstico que se ouviu e a dor que todo mundo sentiu. Eu sou os churrascos com música alta e o amor que nunca esteve em falta. Eu sou o câncer da minha tia, a quimioterapia e uma boa companhia. Eu sou toda a alegria e toda a agonia de toda minha família. Eu sou feita de mil histórias que vieram antes de mim e aprendi de mil formas a ser exatamente assim. E é por isso que eu sei que ninguém me conhece tão bem a ponto de me apontar o dedo e levantar a voz. É por isso que eu não abaixo minha cabeça pra quem não sabe a minha história, a história dos meus pais e a história dos meus avós. É por isso que sou feliz por ser quem eu sou, ter vivido o que vivi e ter nascido no berço em que nasci. Essa vitória ninguém tira de mim.