Eu sou a gota de álcool que fazia meu avô pegar a arma e ir atrás do meu pai no meio do mato. Sou todo medo que a lua observava lá do alto enquanto a noite se arrastava. Eu cresci com o pé no barro e no asfalto, a mão no guidão e a cabeça em um mundo que não é esse daqui. Eu fazia lição na cadeira do lado do fogão. A gente não tinha sala, não tinha sofá, tampouco escrivaninha pra estudar. E a gente nem queria ter, nem precisava ter. A gente agradecia ter o que botar no pé e o que comer. Agradecia ter o que sonhar. Nem computador, nem celular. Bastava um quintal e uma mente pra criar. Eu sou o banquinho que minha mãe subia quando criança pra alcançar a pia e lavar a louça. Eu sou a máquina de costura da minha avó. Eu sou a fralda de pano, a dor nas costas, a roupa batendo e o varal já cheio. Eu sou os tijolos colocados lado a lado pelas mãos cansadas do meu pai. Eu sou o cavalo velho do meu tio e o cheiro do café moendo. Eu sou o caminho pra sombra da mangueira, os coringas do baralho e a caixinha de dominó. Eu sou o nó da rede, eu sou a fome e eu sou a sede. Eu sou o trabalho que minha prima deu, sou o susto que minha mãe pariu, o diagnóstico que se ouviu e a dor que todo mundo sentiu. Eu sou os churrascos com música alta e o amor que nunca esteve em falta. Eu sou o câncer da minha tia, a quimioterapia e uma boa companhia. Eu sou toda a alegria e toda a agonia de toda minha família. Eu sou feita de mil histórias que vieram antes de mim e aprendi de mil formas a ser exatamente assim. E é por isso que eu sei que ninguém me conhece tão bem a ponto de me apontar o dedo e levantar a voz. É por isso que eu não abaixo minha cabeça pra quem não sabe a minha história, a história dos meus pais e a história dos meus avós. É por isso que sou feliz por ser quem eu sou, ter vivido o que vivi e ter nascido no berço em que nasci. Essa vitória ninguém tira de mim.
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