27 de agosto de 2010

Não por você.

Por você eu não choro mais.
Não! Por você eu não vou andar ou correr.
Não vou sonhar, não vou me mover, não vou lutar.
Não por você.

Por você eu não caio mais.
Não! Não arriscarei nem mais um passo pra te ver.
Não vou fugir, não vou mentir nem omitir.
Não por você.

Por você eu não vivo mais.
Não! Não farei de tudo nem de pouco pra ter, te manter.
Não tento, portanto, não me levanto.
Não por você.

Sem você já não sei mais.
Não! As coisas não melhoraram ou começaram a se perder.
Não tenho argumentos pra voltar..
ou ficar sem você.

(Estela Seccatto)

16 de agosto de 2010

Carta de Graciliano Ramos para Heloísa.

Heloísa,

Chegaram-me as duas linhas e meia que me escreveste. Pareceram-me feitas por uma senhora muito séria, muito séria! Muito antiga, muito devota, dessas que deitam água benta na tinta. Tanta gravidade, tanta medida, só vejo em documentos oficiais. Até sinto desejo de começar esta carta assim: "Exma.Sra.: tenho a honra de comunicar a V. Exa., etc".
Onze palavras! Imaginas o que um indivíduo experimenta ao receber onze palavras frias da criatura que lhe tira o sono? Não imaginas. E sabes o que vem a ser isto de passar horas acordado, sonhando coisas absurdas? Não sabes. Pois eu te conto.
Sento-me à banca, levado por um velho hábito, olho com rancor uma folha de papel, que teima em tornar-se branca, penso que o Natal é uma festa deliciosa. Os bazares, a delegacia de polícia, a procissão de Nossa Senhora do Amparo.. E depois o jogo dos disparates, excelente jogo. "Iaiá caiu no poço". Ora o poço! Quem caiu no poço fui eu.
Principio uma carta que devia ter escrito há três meses, não posso concluí-la. Fumo cigarros sem contar, olhando um livro aberto, que não leio. Dançam na minha cabeça uma chusma de idéias desencontradas. Entre elas, tenaz, surge a lembrança de uma criaturinha a quem eu disse aqui em casa, depois da prisão do vigário, nem sei que tolices.
Apaga-se a luz, deito-me. O sono anda longe. Que vieste fazer em Palmeira? Por que não te deixaste ficar onde estavas? Não consigo dormir. O nordeste, lá fora, varre os telhados. Na escuridão vejo distintamente essa mancha que tens no olho direito e penso em certa conversa de cinco minutos, à janela do reverendo. Por que me falaste daquela forma? Desejei que o teto caísse e nos matasse a todos.
Andei criando fantasmas. Vi dentro de mim outra muito diferente da que encontrei naquele dia. Por que me quisestes? Deram-te conselhos? Por que apareceste mudada em vinte e quatro horas? Eu te procurei porque endoideci por tua causa quando te vi pela primeira vez. É necessário que isto acabe logo. Tenho raiva de ti, meu amor.
Fui visitar o Padre Macedo. Falou-me de ti, mas o que me disse foi vago, confuso, diante de dez pessoas. É triste que, para ter notícias tuas, minha filha, eu as ouça em público. Foram minhas irmãs que me disseram o dia do teu aniversário e me deram teu endereço.
Tinha razão quando afirmaste que entre nós não havia nada. Muito me fazes sofrer. É preciso que tenhas confiança em mim, que me escrevas cartas extensas, que me abras largamente as portas de tua alma.
Beijo-te as mãos, meu amor.
Recomendo-me aos teus, com especialidade a dona Lili, que vai ser minha sogra, diz ela. Acho-a boa demais para sogra.
Amo-te muito. Espero que ainda venhas a gostar de mim um pouco.

Teu Graciliano.

Palmeira, 16 de janeiro de 1928.

11 de agosto de 2010

Professor

Um professor chamado Heric veio de uma cidade pequena para a grande São Paulo. Achou estranho, rápido demais, cinza demais, gente demais, carro demais. Os anos foram se passando e ele se tornava um paulista. Um paulista na Paulista. Estava indo para a unidade em que ia dar aula (lá perto da Augusta, onde tudo é possível) e avistou logo a sua frente uma moradora de rua fazendo suas necessidades ali, na calçada. Desviou, mudou o passo e simplesmente seguiu o seu caminho.

E agora ele se pergunta o que eu comecei a me perguntar: que atitude foi essa? A gente se acostuma com as coisas e eu acho que precisamos rever alguns conceitos. Caminhão derrapa na pista: "ah, isso acontece sempre". Menina é estuprada em tal lugar: "ah, isso é normal naquele bairro". Senhor é atropelado na rua de trás: "ah, é comum".
Eu só pergunto à vocês: NORMAL? Precisamos rever nossos conceitos, precisamos parar de aceitar essas coisas absurdas que acontecem e que não, não são normais! Eu não estou sendo ignorante para achar que assim mudaríamos o mundo, essa não é minha meta. Em relação ao mundo eu sou um número. Não importa se eu faço alguém rir ou chorar, não importa se eu sofri muito. Nada da minha história importa pro mundo. O que importa é meu número do CPF - e eu ainda nem fui capaz de decorá-lo.


Normal deveria ser o homossexualismo, os negros, as atitudes extravagantes, os vários estilos musicais e as milhares de mutações, sejam elas genéticas ou não.z

(Estela Seccatto)

9 de agosto de 2010

Give me your opinion.

"A: Inveja porque as outras pessoas podem te abraçar e morder e eu não.
B: Eu só quero a sua mordida.
A: Eu só quero você.
B: Vem dormir comigo hoje?
A: Só hoje? Não pode ser pra sempre?
B: É que era um plano maligno.. você ia vir, achando que era só hoje, e eu ia te roubar pra mim.
A: Eu aceito ser sua refém.
B: E se o mundo te quiser de volta? A gente pode se esconder debaixo do cobertor?
A: Vamos trancar até a porta do quarto pra ter certeza de que eu vou ficar com você."

-E então? O que achou?
Os olhos percorreram as palavras por mais alguns minutos e olharam novamente em minha direção. A respiração foi profunda e as mãos finalmente deixavam o livro. Nenhuma expressão, nenhum sorriso e nenhum semblante de desgosto. Acendeu o cigarro, andou até a janela e ficou olhando o céu, o trânsito, as pessoas.. Na mínima intimidade que podíamos ter, me dei o direito de ir ao seu lado. Eu esperava uma resposta. Fiquei olhando as mesmas coisas que aquele olhar cansado olhava. Me deliciei por alguns minutos da paisagem urbana. Fazia tempo que eu não olhava por uma janela. Ele deu um trago no cigarro e me ofereceu. Dei um trago e o devolvi, não queria abusar. Soltou a fumaça e falou, olhando pra uma nuvem qualquer:
-Isso não é um livro, não é história, não é um conto.
Tanto mistério pra não dar nem um pouco de valor pro meu esforço? Escrevi tudo isso pra nada? Eu não estava indo no caminho certo? Eu só queria a aprovação daquele grande mestre da literatura, mas que diabos! O fato é que eu queria quebrar tudo, sair e bater a porta. Chamar ele de ignorante. Mas eu sabia que ele não era ignorante. Minha história que devia estar ruim mesmo. Ele se virou, andou até a mesa, pegou o rascunho do meu livro e o esticou pra mim na intenção de me devolver. E assim o fez. Peguei as folhas, caminhei até a porta sem dizer nada. Faltava pouco pra porta se fechar quando eu ouvi:
-Pra mim isso é amor.
Virei o rosto e o vi sorrindo. Sorriso de gente experiente. Ele arrumou os óculos e eu sorri de volta. Sai daquela sala com um só pensamento: "É, isso é amor".



(Estela Seccatto)